1. O que significa Exegese?
Exegese (ex + egesis) significa literalmente: “trazer fora” e refere-se a extrair e obter a mensagem para fora do texto. Visto que o N.T. é a Palavra de Deus e sua mensagem é a mensagem de Deus, nós devemos ser cuidadosos em não estar “trazendo para dentro” o nosso próprio significado; o texto deve ser interpretado cuidadosamente quanto possível para que possamos evitar a “eisegese”[1]. Ambos os procedimentos da exegese ou da interpretação, (que são métodos), devem estar de acordo com as fases envolvidas dentro das exigências do texto.
2. Hermenêutica
Antes de ver os passos da análise exegética gostaria de mostrar algumas questões próprias da hermenêutica em si. 1) É impossível ler sem interpretar. Isto significa que toda leitura tem “lentes” e tem ideologias. Com essa primeira questão hermenêutica subjaz uma questão intrínseca que B.B. Warfield levanta em seu livro The inspiration and the Authority of the Bible, (A Inspiração e a autoridade da Bíblia), pois se rejeitamos a Bíblia, rejeitamos todas as informações da teologia.[2]
Em outras palavras, há a premissa de se crer ou não que a Bíblia tem autoridade por si mesma e não depende de “críticas” ou de “testemunhos” extras para dar respaldo a si mesma. A Bíblia é a palavra de Deus e a forma como você se aproxima dela condiciona sua interpretação[3]. Claro que isto determina a minha análise sobre a Bíblia.
Assim se você não crê na Escritura como autoridade absoluta de Deus, eu convido você a não continuar, pois isso, determina a exegese em todos os passos a seguir. Se a nossa leitura vem carregada de ideologias partiremos do fato de que é necessário ir ao texto “nu” (o mais sem roupa possível), e deixar que o texto fale, sem impor e sem transpor as ideologias que o autor quis nos mostrar.
As pessoas pensam que quando se trata da Escritura não precisamos interpretar ou estudar[4] pois basta seguir as idéias bíblicas. Precisamos entender que interpretar é uma decodificação de sinais que envolve comunicação. O discurso que se transforma em texto é discernido por sinais que são traduzidos de outras línguas (no caso do hebraico e grego) que são traduzidos o mais exato possível, (de acordo com o autor)[5]. A maneira como decodificamos esses símbolos ou signos ou expressões idiomáticas, símbolos literários é o local em que se determina a nossa interpretação e a nossa compreensão sobre o texto.
Uma criança não consegue interpretar um texto por causa do conhecimento que ela tem das palavras, expressões idiomáticas, coloquialismos, definições, etc… Claro que uma criança entende algo, (horizonte do leitor), mas o significado não pode ser reduzido a este horizonte[6]. Através da lógica há como provar os erros desta simples compreensão. Alguém poderia perguntar: “mas o significado não vem pela mera leitura?” A confissão de fé de Westminster falando sobre a Escritura diz:
Na Escritura não são todas as coisas igualmente claras em si, nem do mesmo modo evidentes a todos; contudo, as coisas que precisam ser obedecidas, cridas e observadas para a salvação, em um ou outro passo da Escritura são tão claramente expostas e explicadas, que não só os doutos, mas ainda os indoutos, no devido uso dos meios ordinários, podem alcançar uma suficiente compreensão delas. Ref. II Pedro 3:16; Sal. 119: 105, 130; Atos 17: 11, (MARTINS 1991, 9).
Assim, segundo a Reforma, o conhecimento exegético não é exclusividade da academia[7] como muitas vezes hoje se vê. Os indoutos, isto é os que não têm tanto conhecimento podem compreender a Escritura, estudá-la e pregá-la. Mas, o texto (da Confissão) mostra que existem textos em que a interpretação depende de estudo mais aprofundado para elucidar sua intenção original. Por isso faz-se necessário o estudo da gramática Hebraica e grega, o estudo semântico sintático, o bom uso da teologia sistemática e bíblica e acima de tudo a dependência humilde de Deus e de sua revelação (exposta nas Escrituras). Pode-se expor da seguinte forma: “O significado simples não vem pela mera leitura? Em certo sentido sim, mas num sentido mais verídico, semelhante argumento é tanto ingênuo quanto irrealista por causa de dois fatores: a natureza do leitor e a natureza da Escritura”, (STUART 1982, 14).
Talvez outro fator importante que se deve colocar aqui é lembrar que as traduções são formas de interpretação e por isso o leigo (sem conhecimento das línguas e da sintaxe original) e o estudioso podem e devem recorrer às boas versões e aos bons dicionários. O uso de comentários e léxicos apropriados também são muito importantes, pois eles nos ajudam a ver questões que às vezes, não estão muito claras no texto.
O que precisamos para uma boa exegese é saber que todo o leitor quer deseje ou não, consciente e inconsciente é um intérprete em potencial[8]. Corremos o risco de pensar que o que entendemos é a intenção do Espírito ou a intenção do autor do texto. Mas usando o critério reformado do Sola Scriptura percebemos a singularidade de que a Bíblia interpreta a própria Bíblia, sendo assim toda crítica ou interpretação crítica é bem vinda, desde que esteja de acordo com a Escritura de maneira clara[9].
James K. A. Smith critica a ortodoxia de impor uma interpretação reformada para textos da Escritura, ele defende a interpretação pós-moderna de vários autores[10] e diz: “para muitos cristãos que tem proclamado sua prática denominacional como o: “ensino claro das Escrituras”, … estes materiais são “claros” somente por causa dos óculos coloridos de uma tradição interpretativa.” (SMITH 2000, 43).
O que K. Smith não leva em consideração é o caráter da lógica[11]. Mesmo sendo teologia reformada, ou qualquer outra teologia antiga, moderna ou pós-moderna, deve estar dentro dos critérios de avaliação da própria Escritura. A grande questão hoje é que muitos têm estabelecido pressupostos[12] sobre a fonte da Escritura para lhe tirar toda a autoridade.
Pode-se dizer que o antigo Método Histórico Crítico (MHC) sempre intentou pressupor além de seus limites, porque rejeita a possibilidade do fenômeno além da sua compreensão[13]. A exegese por este método demonstra que suas críticas procuravam estabelecer pressupostos não do texto ou da Escritura e sim de critérios sob a perspectiva da mente do homem moderno.
O MHC foi uma metodologia que surgiu por volta do século XVIII com J. S. Semler (1725-1791), chamado de pai da crítica moderna; J. P. Gabler, (1753-1826); G. L. Bauer (1755-1806) e F. C. Baur , (1792- 1860)[14]. Seus principais pressupostos eram: racionalismo, (a razão elimina tudo o que é sobrenatural, ou aquilo que não se encaixa dentro dela), historicismo, (a Escritura não é um registro divino e sim um registro histórico de idéias sobre Deus, ao mesmo tempo em que sua historicidade sempre é questionável), e objetivismo (a aproximação da Bíblia deve ser sem preconceitos ou dogmas), em sua forma de aproximação. Claro que não existe ninguém que possa aproximar-se de qualquer texto sem pressupostos, como temos demonstrado.
A “verdade” era a grande questão do século XIX. A pergunta era: é possível encontrar a “verdade”, partindo de fundamentos cristãos? Francis A. Schaeffer demonstra que o racionalismo elevou tanto a razão que os críticos bíblicos extrapolaram o uso dela, ele diz:
Partindo de um fundamento cristão, temos esperanças de descobrir algo de verdadeiro acerca do universo pela razão. Há outros resultados da cosmovisão cristã. Por exemplo, existe a certeza de algo “aí”, uma realidade objetiva, que pode ser examinado pela ciência, […], em outras palavras o que existe não é uma grande máquina que inclui tudo, (SCHAEFFER 2003, 91 e 93).
Neste período ainda havia esperança de encontrar a verdade. Com a chegada da filosofia existencialista[15] a verdade começou a se tornar impossível. Essa filosofia levanta questões do ser e ao mesmo tempo, destrói reduzindo-o a nada. Não há verdade, não há moralidade, não há Deus (F. Nietzsche), a única coisa que sobrou é a existência e o mundo ao seu redor. Embora a filosofia e teologia nadassem juntas neste período, podemos ver que as coisas não mudaram muito.
O que estamos a expor aqui é o problema hermenêutico do século XX e XXI. Queremos que o leitor deste livro possa visualizar a importância da exegese e construir estudos de forma a contribuir e enriquecer os estudos bíblicos. Não há espaço para expor aqui todos os problemas hermenêuticos que surgiram depois da Reforma, mas pelo menos deve o leitor estar atento que uma exegese que não procura a intenção do autor e os pressupostos do texto deve ser rejeitada.
[1] Esse temo foi utilizado por Joaquim Jeremias em seu livro: A Teologia do N.T.
[2] WARFIELD, Benjamin B. The Inspiration and Authority of the Bible. Phillipsburg: The Prebyterian and Reformed Publishing Company, 1948, p.14.
[3] Há muitos que argumentam que a Bíblia não deveria ser estudada de forma leviana. Outros procuram demonstrar que os estudos críticos podem ajudar. Há razões que demonstram que a postura de crer ou não crer compromete os estudos em si, por isso, dentro deste critério subjetivo deve-se ter cautela.
[4] Essa é uma ideologia que veio do medo de cair no racionalismo histórico que não crê no estudo sério.
[5] Veja meus textos publicados sobre tradução e hermenêutica: http://edeberanger2.blogspot.com/ e http://edeberanger.blogspot.com/.
[6] Várias interpretações hoje ressaltam tanto o intérprete mais que o texto e o autor do texto. Algumas teologias baseadas neste método fazem com que o contexto (atual) conduza a exegese e não o contrário, exemplo disto é a teologia da libertação. Em alguns círculos evangélicos isto ocorre da seguinte forma: a prática (experiencial ou do fenômeno religioso) conduz ao texto bíblico e não o texto bíblico conduz a prática. Exemplo: o uso de azeite para unção em muitos círculos evangélicos, usado deliberadamente sem o menor critério exegético do A.T e N.T.. Há muitos outros exemplos, mas a hermenêutica pragmática é a mesma. O critério não é: Deus mandou fazer assim? E sim: isto dá certo e eu vou fazer.
[7] Salienta-se que muitos livros de exegese discutem pontos críticos de tal forma que parece que este é o conhecimento apenas da Academia. Essa arrogância teológica precisa ser quebrada. O protestantismo tem sofrido ataques do racionalismo. Sua exegese tem sido afetada pela crença que o homem tem (pela razão), todo o poder para dizer o que é certo e o que é errado. A doutrina da “hermenêutica” depende do Espírito Santo, sem Ele, é impossível qualquer pretensão teológica. Sendo assim, não podemos cair em extremos, por um lado o intelectualismo e por outro a negligência do estudo sério.
[8] Assim todos são passíveis de críticas.
[9] Os reformadores sempre insistiram neste ponto, isto é que a Escritura tem autoridade total de julgar todas as interpretações e ela é suficiente, isto não precisa de nenhum esclarecimento humano, (ANGLADA 2006, 73).
[10] Ele defende J. Derrida, H.G. Gadamer que utiliza critérios de desconstrução subjetivos de leitura e interpretação para mostrar a queda da interpretação.
[11] Talvez seja importante relembrar que o caráter de interpretação de textos hoje tem rejeitado toda a lógica, os postulados da lógica semiótica foram rejeitados tanto pela interpretação existencial de Gadamer, como a psicológica de Paul Ricoeur e o desconstrucionismo de J. Derrirda.
[12] Pressupostos são suposições pré-estabelecidas sobre uma determinada base necessária para estabelecer outras idéias. Assim, necessitamos da lógica para estabelecer critérios de julgamento entre o certo e o errado nas pressuposições. Não há arbitrariedade e sim ordem no meio do caos hermenêutico.
[13] R. Bultmann é o tipo de teologia moderna que se utiliza de concepções modernas para tentar equilibrar e e tornar a teologia relevante para o século XX, sua “demitologização” é uma espécie de desconstrução, ou seja, tira-se do texto tudo aquilo que não comporta na mente do homem do século XX.
[14] Há outros nomes que poderiam entrar aqui. Para uma boa avaliação do liberalismo teológico veja o artigo de COSTANÇA 2005, As raízes do liberalismo Teológico e ainda uma análise crítica desse método: Entendes o que lês? P.
[15] Há dois tipos de existencialismo: o religioso e o ateu. Para uma compreensão sobre este tema veja: o site: http://ocanto.esenviseu.net/lexe.htm acessado ás 16Hs em 20/09/2007.
Texto Extraído da Apostila de Exegese do Dr. Edvaldo Beranger