Entende-se por crítica textual toda pesquisa cientifica em busca da verdadeira forma de um documento escrito no original, ou, pelo menos, no texto mais próximo do original. No que diz respeito aos autores dos últimos quatro séculos, depois da genial invenção de Gutenberg, podemos estar certos de possuirmos suas obras exata mente como foram escritas, salvo raras exceções, particularmente quanto a erros tipográficos de menor importância. Já não se pode dizer o mesmo a respeito das obras que circularam em manuscrito antes da invenção da imprensa. Não é de admirar que os escritos copiados múltiplas vezes, uns cuidadosamente, mas outros sem maiores cuidados, e isto durante séculos, sofressem múltiplas e variadas alterações. Isto constitui, nos diferentes documentos conhecidos da mesma obra, o que se chama de variantes ou textos divergentes. E a crítica textual, particularmente a do Novo Testamento, tem por objetivo a escolha do texto, entre todos os encontrados nos vários manuscritos, que possua a maior soma de probabilidades de ser o original ou a forma primitiva do autógrafo, já que não possuímos nenhum dos autógrafos do Novo Testamento, mas apenas cópias e algumas delas distantes mais de dois séculos do original.
Esta busca científica dos originais ou dos textos que lhes sejam mais próximos é de extrema dificuldade, cheia de problemas de vasta complexidade. A regra geral nos leva a concluir que, quanto mais distante dos autógrafos, tanto quanto ao tempo como quanto ao número de cópias, maior a corrupção do texto, maior a soma de erros. No entanto, esta regra não é absoluta.
Há obras, e o Novo Testamento é deste tipo, onde a matéria em si leva o copista a correções intencionais, e a corrupção, neste caso, não estaria em função da distância que separa a cópia de seu original, nem quanto ao número de cópias nem mesmo quanto ao tempo, mas em função direta e inequívoca da matéria a ser copiada. Entretanto, o maior número de cópias torna os labores do crítico mais suaves, pois o pequeno número de manuscritos conduz probabilidade de perda, nalguns lugares, da verdade original, que só pode ser alcançada mediante conjetura, processo deveras precário.
O Novo Testamento leva grande vantagem quanto ao tempo que separa suas primeiras cópias manuscritas dos respectivos autógrafos. Possui o Novo Testamento cópias completas dentro do quarto século, menos de 300 anos de seus originais. Os papiros descobertos por Chester Beatty (P45, P6 e P47), estão dentro da primeira metade do terceiro século. Recuando mais, temos a coleção de papirus Bodmer (P”6, P72 e P74), sendo que P66 recua o estudante a cerca do ano 200. O P52, na John Rylands Library, de Manchester, Inglaterra, leva-o ao ano 125 e, como se trata do texto do Evangelho de João, representa cópia dentro dos 30 anos próximos da produção dos autógrafos.
Não se dá o mesmo com os clássicos gregos e latinos, embora estes últimos estejam em melhor situação que aqueles. A cópia mais antiga que existe de Sófocles foi escrita 1.400 anos depois da morte do poeta. Ésquilo e Tucídides estão nas mesmas condições. O intervalo entre a obra de Eurípides e o manuscrito mais antigo existente é de 1.600 anos. Para o grande Platão o intervalo é de 1.300 anos. Entre os latinos, enquanto em Catulo o intervalo é de 1.600 anos e para Lucrécio de 1.000, Terêncio e Lívio reduzem-no para 700 e 500 anos respectivamente. Só Virgílio se aproxima do Novo Testamento, pois há um manuscrito seu do quarto século, quando o autor faleceu em 8 a.C.
Quando consideramos o número de cópias, o Novo Testamento possui cópias muito mais numerosas que as dos clássicos. Velleio Petárculo sobreviveu em um único e incompleto manuscrito, que se perdeu no século 17, após haver produzido suaeditio princeps através de uma cópia feita por Beato Rhenano, em Amerbach. Tácito existe em seis livros de sua famosa obra, os Anais, em um único manuscrito do nono século. Enquanto se nomeiam cinqüenta, talvez quarenta manuscritos de Ésquilo, cerca de cem de Sófocles, algumas centenas de Cícero ou Ovídio, o Novo Testamento possui, entre manuscritos completos e outros de partes escritas na língua original, 5.366 (Aland). Possui ainda precioso elemento de que não se pode lançar mão quando se trata de clássicos: são as versões. Só da Vulgata latina contam-se 8 mil cópias, que, ao lado de mais mil da siríaca, cóptica, armênia, etiópica ou gótica, faz com que tenhamos muito mais de 13 mil elementos. Embora essa multiplicidade de cópias oferecesse ensejo para faltas involuntárias e intencionais, oferece também muito mais elementos de comparação.
A tarefa do crítico é reagir contra os erros dos copistas. Ninguém deve recear a tarefa, nem mesmo menosprezá-la, quando se pode afirmar, com os entendidos do assunto, que não só os grandes manuscritos mas também os mais antigos papiros atestam a integridade geral do texto sagrado. Todavia, a insofismável autoridade de Lagrange diz que entre esta pureza substancial e um texto absolutamente igual aos originais há distância apreciável.[1]
Se nos lembrarmos de que os manuscritos e citações diferem entre si entre 150 mil e 250 mil vezes, que um estudo só do Evangelho de Lucas revelou mais de 30 mil passagens diferentes e que, como afirma a autoridade de M. M. Parvis.[2] “não há uma só sentença no Novo Testamento na qual a tradição seja uniforme”, sentiremos a grandeza e a responsabilidade da tarefa. Há uma afirmação do mesmo Prof. Parvis, da Universidade de Chicago, que surge aos olhos do leigo como um choque tremendo, só podendo ser avaliada pelos estudiosos da matéria, e que o presente Autor não pode deixar de transcrever: “Até que esta tarefa esteja completa, a incerteza a respeito do texto do Novo Testamento permanece.”[3] Todavia, a obra dos Aland em Münster, de Nestle-Aland no NTG e das Sociedades Bíblicas Unidas no GNT, encurtaram o caminho, e muito.
Vale a pena registrar também que a elevada cifra de variantes, em sua maioria esmagadora, diz respeito a questões que não afetam o sentido profundo do texto e que o número de variantes que se revestem de importância, especialmente no que diz respeito à doutrina, é assaz reduzido.
A tarefa da critica textual do Novo Testamento é, diz Kenyon,[4] “o mais importante ramo da ciência”. Ela trata com um livro cuja importância é imensurável e vital, mais importante que qualquer outro livro do mundo, pois o Novo Testamento é único, nem mesmo comparação pode sofrer.
É tarefa básica, pois dela dependem as outras ciências bíblicas. A crítica textual lança os fundamentos sobre o qual a estrutura da investigação espiritual deve ser construída. Sem um bom texto grego, tão mais próximo dos autógrafos quanto lhe permitam os labores da crítica textual, não é possível fazer segura exegese, hermenêutica, crítica histórica ou literária, nem mesmo teologia, para não falarmos em tradução.
Embora seja chamada de baixa crítica e bem modestos os seus esforços, é fundamental e indispensável ao estudante do Novo Testamento, desde o tradutor até o teólogo. O crítico textual tem por função, primeiro, a coleta do material documentário, encontrado nas variantes do texto bíblico. Essas variantes, tendo como base o Textus Receptus, encontram-se nos manuscritos unciais, minúsculos, papiros, devocionários, versões, citações patrísticas. O Novum Testamentum Graece e The Greek New Testament fornecem esse material e todos os elementos indispensáveis a essa identificação e capacitam o analista a dar a cada variante o peso e o valor que sua fonte traz consigo própria, levando-o à escolha do texto que mais se aproxima do original.
Para que ele possa realizar bem sua primeira função é necessário que esteja familiarizado com o material, terreno onde realiza suas investigações. Deve conhecer não só os vários manuscritos, versões e citações dos antigos escritores da igreja cristã, como também o modo pelo qual foram produzidos, os usos da escrita literária e não-literária do tempo, o material usado, o destino e o objetivo final dessa mesma produção. Isto será discutido na primeira porção destes estudos.
Para que possa realizar a segunda parte, mais profunda, mais difícil e que requer mente bem-educada e de grande acuidade intelectual, deve conhecer a própria história do texto, os métodos da crítica textual, teologia do autor cujo livro se examina, a história das doutrinas, a língua original, particularmente sua gramática, e um conhecimento cultural da época do autor e dos escritos cujas cópias considera.
Por estas ligeiras indicações o leitor pode ver não só a extensão, mas as implicações desta ciência. Isto para não falarmos em paleografia, arqueologia, conhecimento dos clássicos, como quer a escola alemã, pois se pressupõe este trabalho já realizado pelos respectivos especialistas e colocado ao alcance do crítico textual através da caracterização dos vários documentos. Esta obra é mera introdução a uma ciência que, embora ainda nova quanto a seu desenvolvimento, já possui abundante messe bibliográfica e material de pesquisa igualmente abundante.
Comece a pesquisar….
Edvaldo Beranger – Professor de Introdução à Metodologia Exegética.
(Extraído de B. P. Bitencourt por Edvaldo Beranger)[1]
[1] O Novo Testamento: Metodologia da pesquisa Textual, B.P. Bittencourt, 3ª Ed. Rio de Janeiro: JUERP, 1993.
[1] Joseph Marie Lagrange. Saint Man: (Paris: 4eme Ed., 1929), p. CLXV.
[2] Artigo “Texto of the New Testament”, The Interpreter´s Dictionary of the Bible (Nova York: Abingdon Press, 1962), p.595.
[3] Ibid., p.594.
[4] Frederic G. Kenyon, Handbook to the Textual Criticism of the New Testament (Grand Rapids: B. Eerdmans Pub. Co, 19511, p. 3.
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